Não ficamos indiferente ao artesanato português, mas quanto estamos dispostos a pagar por ele?
Esta é uma luta da Esperança Vitória, Artesã & CEO da Victoria Handmade, que, crescida numa família de artesãos de junco, desistiu da profissão antes de a começar, ao ver as dificuldades da família num produto que sempre foi vendido abaixo do preço de produção. Mas o falecimento da mãe mudou a sua história e até já venceu o Prémio Nacional de Artesannato e emprega a irmã. Lê tudo na entrevista abaixo.
Como surgiu a ideia de criar a Victoria Handmade?
Enquanto história e tradição, esta Arte de tecer o Junco faz parte da nossa família desde 1952, quando a minha Querida Avó Vitória colocou o meu pai na escola para aprender esta Arte Ancestral – ele ainda com 9 anos de idade – nunca tendo parado desde então – e já na altura conhecido por ter as melhores cestas de junco da aldeia – ensinando posteriormente à minha mãe e a cada uma de nós desde tenra idade, suas filhas.
Com 38 anos de idade, com o falecimento da minha mãe a juntar à falta de realização profissional que passava no momento, decidi despedir-me do emprego onde estava há 14 anos para trabalhar naquele que aprendi desde os 5 de idade. Para trabalhar naquilo que todos diziam ser impossível de sobreviver e do qual me afastei à primeira oportunidade com ainda nem 18 anos devido à sua insustentabilidade: na cestaria de junco.
Sabendo que a minha maior luta seria a desvalorização do artesanato, mas não perdendo o desejo de valorizar a arte de tecer o junco com a ousadia de lhe acrescentar modernidade, para que pudéssemos continuar a tecer estórias.
E foi assim que o projeto Victoria Handmade nasceu, em memória da minha Querida Mãe que partiu deste universo no mesmo ano, e do meu Pai que via esta arte extinguir-se entre as suas mãos, dia após dia, sem antes alcançar as suas: Uma força que nos fez renascer.
Transformar cestas de junco num produto premium. Conte-nos como tem sido esta jornada?
A jornada tem sido revolucionária, revoltante e agridoce, mas ao mesmo tempo a nossa maior vitória e sentimento de realização.
Infelizmente existe a ideia pré-feita de que o artesanato tem de ser barato, e isso tem sido o nosso maior obstáculo. Tornar este produto premium foi essencial para preservar e dignificar esta arte, cada vez mais à beira da extinção.
O facto de toda a vida estas cestas terem sido conhecidas tradicionalmente nas feiras a preços ridiculamente baixos foi, e ainda hoje o serem, é a nossa maior batalha e revolta. Porque se por acaso tiverem a sorte de falar com o próprio artesão e questionar se a arte dele permite sobreviver dela, nós temos a certeza da resposta. Nós vivemos essa resposta na pele toda a vida dos 5 aos 17 anos ao ponto de desistir dela e estar mais de 20 anos afastadas. E chegarmos ao ponto de o público achar que os estamos a roubar, de literalmente nos chamarem de tal e até pior depois de criar a Victoria Handmade, é o nosso maior lamento.
Mas o que as pessoas não têm noção, é que já na altura em que o meu pai vendia as cestas a um comerciante para que, esse sim, as vende-se nas feiras a um preço ”justo” onde ganhava margens de 100 e 200% de lucros, o meu pai teve de as vender a um preço que claramente não pagava as horas de trabalhos que ele, as suas 3 filhas e esposa investiram. Quando as pessoas nos dizem ”encontramos cestas de junco na feira por 20€” não têm a real noção que, nesses 20€ que pagaram, o comerciante tem uma margem de 100%, e uma Esperança Vitória de 5 anos, fez essa mesma cesta a preço 0 para os pais as poderem vender a alguém que a comprasse.
Então se dissessem a essa Esperança, que aos 38 se despediria de um emprego estável, para retornar a um trabalho que fugiu a 7 pés, essa Esperança de 5 anos iria rir-se na cara da de 38 e provavelmente chamá-la de louca. Mas quando me dei conta que na minha aldeia natal – Castanheira, Cós – Alcobaça – esta arte se perdia nas mãos dos mais velhos enquanto complemento à reforma, e que a minha mãe faleceu com o desejo de poder voltar a ver cestas a saírem da nossa casa como antigamente e o meu pai cada vez mais incapacitado de continuar nesta arte, ganhei a coragem que precisava para começar esta jornada: de ser das artesãs mais novas deste mercado, e a primeira – e atualmente das muitas poucas – a ter todos os seus direitos de trabalhador assegurados – segurança social, um ordenado, portas abertas de um atelier, tudo o que uma empresa artesanal tem de encargos – e 2 anos depois, ainda conseguir empregar a minha própria irmã mais velha, Carla, desempregada na altura, foi um sonho, que não sabia ter, realizado.
Concluindo, tornar as cestas de junco em algo premium foi a única forma de não permitir que esta arte morresse nas minhas mãos sem antes chegar às do público. Entregar a mais alta qualidade artesanal. Uma cesta Victoria Handmade tem entre 8 a 16 horas de trabalho das minhas mãos e da minha irmã. E apesar de haver um maior investimento nosso e da parte de quem compra, que opta por qualidade em vez de quantidade, o que nos consola é saber que também haverá menos desperdício, mais intenção e amor por detrás de tudo o que fazemos, temos e somos.
Como se conta a história por detrás de um produto que tem uma arte ancestral incorporada?
Conta-se muita estória, nostalgia, memórias, e paixões, numa única peça. Sentimentos esses por parte de quem faz, e por parte de quem a compra.
Acreditamos que a única forma de preservar as artes e ofícios é ao manter os métodos de produção inalterados, mas entregar um resultado contemporâneo diretamente das mãos do artesão até à pessoa para quem aquela peça foi feita. Há um sentimento de ”orgulho” que sai das nossas mãos, ao fazermos cada peça. E quando é entregue à pessoa para quem foi feita, sabemos que ambas as mãos, as nossas e as dessa pessoa, se fundem numa só estória: o nosso legado.
O que é que existe de local e típico na Victoria Handmade?
Todas as nossas peças são 100% feitas-à-mão – típico da arte em questão, pois não existe outra forma de o fazer senão manualmente – com materiais naturais e 100% nacionais.
O nosso junco, uma planta que nasce selvagem em terrenos alagadiços, é apanhado por nós mesmas no centro de Portugal. Todo o nosso couro, sempre de curtimento vegetal que reduz a nossa pegada verde e permite tornar o nosso produto da mais alta-qualidade eco-friendly, advém de Alcanena classificada como a melhor zona de curtumes de Portugal.
Portanto, de típico existe pouco enquanto resultado final de design, mas a essência de um produto 100% português mantém-se fiel.
Fale-nos um pouco sobre o processo de criação destes produtos que começam com a apanha do junco.
Existem 5 grandes fases antes de um produto victoria handmade chegar às suas mãos.
1 – Apanha do Junco
Tudo começa na apanha e secagem do junco, onde somos gratas pelo que a natureza nos traz de melhor. Esta é a fase mais difícil de todos os processos, e aquela em que a natureza tem de trabalhar a nosso favor e que torna as restantes fases possíveis.
O junco cresce selvagem em terrenos com grande abundância de água – sem água não haverá junco, então é essencial que tenhamos um inverno chuvoso, para que a semente do junco possa crescer nas terras alagadiças. Chegando a primavera, é essencial o sol para fazer brotar a espiga do junco e terminar assim a fase do seu crescimento. A partir de Maio até Agosto – dependendo do estado de espírito do tempo durante todo o ano anterior – podemos apanhar o junco, ir directamente às terras, cortar rente ao chão e dividir em fechos da braçada de um homem comum.
No fim da apanha, passamos pelo processo de secagem. Esta também é feita naturalmente. O junco é estendido em terrenos sobre o forte sol de verão para que a sua cor original verde escura, possa secar sobre o sol até ao tom ”natural” creme pérola. – Aqui é essencial que não chova pois se chove no momento em que o junco está estendido sobre os terrenos a secar, este acaba por ficar manchado e não chega a secar totalmente, ficando com junco ”imperfeito” para todo o resto do ano.
Pelo que esta fase apenas acontece uma vez por ano, tendo que apanhar junco suficiente para o ano inteiro até à próxima campanha, pois só no verão é que o junco está pronto a apanhar, e só o sol o pode secar. Se esta fase não acontecer, o junco acaba por apodrecer nos terrenos, até renovar num próximo ano.
2 – Preparação do Junco
Fase 2 é a preparação da matéria prima: o junco no fim de seco pelo sol, tem de ser escolhido, manualmente pauzinho a pauzinho, os juncos bons a trabalhar (que não estão muitos escuros, podres, juncos que são demasiado duros para trabalhar, ou demasiados moles, ou ervas misturadas nos molhos que foram apanhados). Além desta escolha, existe o processo de retirar a espiga/semente do próprio junco, uma vez que não podemos tecer cestas com a semente misturada! No fim da escolha feita, o junco é limpo e enxofrado para clarear – este processo é um método ancestral que faz toda a diferença para permitir que o junco seja bom a trabalhar.
3 – Tingimento do Junco
Fase 3 é o tingimento em diferentes cores, das mais neutras às coloridas, onde o junco, a água quente e pigmentos naturais de cor são colocadas ao lume para que o junco agora de tom creme, possa ser tingido de vermelho, ou verde, amarelo, etc. No fim de tingido, o junco é novamente colocado a secar ao ar para concluir a aderência da cor.
4 – Tecer as peças com o fio de juta (um fio natural)
Fase 4 é finalmente o tear: tecer as peças com fio de juta (um fio natural). O junco é entremeado com a juta pauzinho a pauzinho, batido com um pente de madeira, até criarmos uma esteira completa do tamanho correto. Um tear completo, pode levar entre 6 a 7 esteiras. No fim de encher o tear, cortamos, atamos as pontas e voltamos ao tear para fazer um 2º tear, este para as laterais das esteiras que fizemos primeiramente. Conclusão, para fazer uma cesta, serão sempre precisos dois teares: um para fazer o corpo principal, e um segundo para fazer os 2 cantos para esteira que irá dar forma à cesta.
5 – Acabamentos
Fase 5 são os acabamentos. Onde por fim podemos coser a peça para dar forma à cesta, ornamentamos com ferragens, colocamos asas de verga, protegemos com um acabamento à base de água para que as peças se tornem impermeáveis, assim como o couro eco-friendly desde alças, assas, cantos, etc é todo cortado manualmente por nós (compramos ao fornecedor o couro completo do animal, para ser aproveitado da melhor maneira de modo a evitar qualquer tipo de desperdício.)
Podemos ainda mencionar uma fase 6 em que a peça está por fim concluída, e toda a promoção online, fotografias, webdesign, gestão de redes sociais, atendimento ao cliente, gestão de encomendas, é ainda assegurada pela nossa equipa atual onde eu, a minha irmã e a minha filha entregamos o nosso melhor até si.´
Conclusão
Para que entendam melhor, tradicionalmente não é comum uma única família fazer todos os processos por detrás de uma cesta. Na minha aldeia, o comum é:
- Uma família que apanha e vende o junco;
- Uma segunda família que faz os tingimentos e tece no tear;
- Outra família que cose e dá forma à cesta,;
- Outro alguém que coloca as asas de vime/verga;
- Por fim, alguém que a vende – seja o próprio artesão (pouco comum) ou um comerciante.
Nós, na Victoria Handmade, sentimentos a necessidade, de modo a ser sustentáveis e ter total confiança que entregamos a melhor qualidade artesanal, de fazer tudo. Só deste modo poderíamos fazer a diferença.
Há uma forte componente manual em toda a criação. Quantas horas demora até termos uma cesta Victoria Handmade nas mãos?
O facto de todos os processos que referimos acima não serem feitos uns atrás dos outros, permite que todo o tempo seja diluído em mais do que uma peça. No entanto, todos estes processos consomem bastante tempo, e podemos assegurar que contabilizando todos os processos, apenas uma peça tem no mínimo entre 8 a 16 horas de trabalho artesanal: todo esse trabalho nosso do início ao fim.
Qual é o vosso produto estrela? Aquele que melhor simboliza a vossa proposta de valor e que mais vende.
Sendo a nostalgia que cada peça Victoria Handmade acarreta pelos tempos e memórias felizes que vivemos no passado ao lado destas cestas, sem dúvida que há uma peça que ganha vitoriosamente o título ”Best Seller”. O nosso modelo Cesta Shoulder, Strong Escuro é a peça favorita da grande maioria, retrata na perfeição a aliança entre a tradição e a contemporaneidade.
Quem é o vosso cliente? Como o caracteriza?
Atualmente temos dois grandes tipos de cliente:
- os consumidores de slow-fashion
- os consumidores nostálgicos.
O nosso produto retrata muita nostalgia e memórias ao público português, e a nossa alta qualidade artesanal faz com que seja cobiçado pelo público em geral, sendo o foco em mulheres modernas entre os 30-45 anos de idade de uma classe média / alta.
O facto de sermos um produto derivado de fibras naturais, e devido à nossa história, tradição e a nossa missão, encaixamos na perfeição no conceito de slow-fashion, que acreditamos ser cada vez mais o futuro para melhor. O público internacional é o que de momento mais se concentra neste conceito e estilo de vida. No entanto, apesar de partirem do princípio do contrário, especialmente nesta fase difícil que todos nós atravessamos, o público português tem uma grande parte da fatia do bolo da nossa faturação, sendo este consumidor nostálgico que atualmente se sobrepõe ao da slow-fashion, mostrando a união que é o Português comprar o que é Português.
As cestas tradicionais Victoria Handmade foram distinguidas com o Prémio Nacional do Artesanato. Em que consistiu esta distinção e o que simboliza para si?
Mais do que alguma vez poderei explicar.
Existe um sentimento de missão cumprida, apesar de ainda haver tanto a fazer. Sinto, e tenho a certeza, que a minha mãe, onde quer que esteja, está orgulhosa do mesmo modo que os olhos do meu pai brilharam quando lhe dei a notícia. Este prémio retrata toda a minha família, e saber que tudo o que a victoria handmade é foi conquistado sempre em família e união, é surreal e impossível de transpor em palavras.
Os anos de dedicação que demos a esta arte, representados num único prémio. Pensar que tudo isto começou graças à minha avó Vitória que, apesar de não saber fazer, foi quem incentivou que esta arte fizesse parte de quem somos; que me permitiu ganhar este prémio.
E por fim, mas não menos importante, este prémio simboliza que o artesanato tem valor, que o artesão não é um pobre coitado e sim um Artista. Que o Artesanato está cá, e merece ficar. E que não podemos lamentar as coisas, depois de as perdermos. Esta é a hora de valorizar o artesanato. Artesanato é Cultura Portuguesa, e está nas nossas mãos preservar essa cultura.
Quais os próximos passos para a marca?
Continuar a investir em nós mesmas, independentes de qualquer tipo de marcas ”gigantes” para nos fazermos notar.
Continuar a deixar a nossa Arte falar por si e chegar mais longe.
Continuar a inovar em cada coleção, continuar sustentáveis e fiéis à nossa ética de trabalho e ambiental.
Continuar a tecer estórias e momentos felizes ao lado de quem nos aprecia, e por fim ser quem somos: artesãs, de corpo e alma.
Esperança Vitória
Artesã & CEO – Victoria Handmade